sábado, 24 de maio de 2025

Musa, sinceramente, vai chatear o Camões - José Miguel Silva

 Musa, sinceramente, vai chatear o Camões.

Que podem os poetas, diz-me, contra marketeers,
aguados humoristas e outros promotores
da realidade? Eu sei que não identificas real
com verdadeiro, nem sequer com existente,
mas que valor pode ter uma metáfora sem preço,
por brilhante que seja, neste mundo de gritos,
de sementes apagadas em lameiros de cimento?
Tu não vês o telejornal, Musa? Nunca ouviste
falar da impermeabilização dos solos na cidade
de Deus, do entupimento das artérias cerebrais?
Pensas que estás no século XIX? Mais, julgas-te
capaz de competir com traficantes de desejos,
decibéis e abraços? És capaz de fazer rir um
desempregado, de excitar um espírito impotente?
Consegues marcar golos «geniais» como o Ricardo
Quaresma, proteger do frio as andorinhas,
transportar as crianças à escola? Se achas que sim,
faz-te à onda do mercado, Musa, e boa sorte.
Mas não contes comigo pra te levar à praia.
Sabes perfeitamente que detesto areia, sol
na testa e mariolas de calção. Vá, não me maces.
Pela parte que me toca, ficamos por aqui.


José Miguel Silva


[Luz & sombra]

Chamada geral - Mário Henrique Leiria

 

Chamada Geral

"Avisam-se todas as polícias
fugiu um homem

tem
olhos muito abertos
duas mãos dois pés
caminha persistentemente

atenção
supõe-se que é perigoso

sinais particulares:
baixa-se com frequência
para fazer festas a um gato
apanha folhas caídas
antes que o varredor as leve
gosta de tremoços

atenção
GOSTA DE TREMOÇOS

repete-se
avisam-se todas as polícias
anda um homem à solta
à solta

atenção
tem-se como certo
que é
realmente perigoso

os aeroportos
já estão sob vigilância permanente
tudo está a postos
não poderá passar
por nenhuma fronteira
que seja conhecida

insiste-se
avisam-se todas as polícias
anda um homem em liberdade

atenção
em liberdade

delações muito recentes
permitem afirmar
que fala com frequência

todo o cuidado é pouco

consta também
embora sem referências concretas
que está sempre presente
nos locais os mais suspeitos
apela-se com insistência
para o civismo de todos os cidadãos
para a denúncia rápida e eficaz
há recompensa

atenção
anda pelo país um homem
livre

não se sabe o que fará

exige-se
a quem o vir
que atire imediatamente
é urgente

atenção
atenção
chamam-se todas as polícias
uma informação
da máxima importância
relatórios afirmam
que frequentemente
sorri com extrema virulência

repete-se o apelo
ATIREM PARA MATAR
NADA DE PERGUNTAS."

Mário Henrique Leiria 

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Mãezinha - António Gedeão

Mãezinha

A terra de meu pai era pequena
e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.
Corria branda a noite e a vida era serena.

Segundo informação, concreta e exata,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3023 mulheres, das quais
45 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai do berço até à puberdade.

28 por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (oh! nunca mais!) tinham sequer sorrido
desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, mães de filhos…
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas
nestas considerações.)

Das outras, 10 por cento,
eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que por temperamento,
ou por outras razões mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.

Além destas meninas
havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a bordar por detrás das cortinas
espreitando, de revés, quem passava nas ruas.

Dessas havia 9 que moravam
em prédios baixos como então havia,
um aqui, outro além, mas que todos ficavam
no troço habitual que o meu pai percorria,
tranquilamente no maior sossego, às horas em
que entrava e saía do emprego.

Dessas 9 excelentes raparigas
uma fugiu com o criado da lavoura;
5 morreram novas, de bexigas;
outra, que veio a ser grande senhora,
teve as suas fraquezas mas casou-se
e foi condessa por real mercê;
outra suicidou-se
não se sabe porquê.

A que sobeja
chama-se Rosinha.
Foi essa que o meu pai levou à igreja.
Foi a minha mãezinha.

António Gedeão, in Linhas de Força

terça-feira, 25 de março de 2025

Breve reflexão filosófica - Nuno Júdice

Breve reflexão filosófica 

Queria encontrar uma palavra, entre a saudade

e o absoluto, que me permitisse pensar sobre a vida, 

isto é, sobre alguma coisa. Pôr-me-ia no lugar do filósofo 

e começaria por dizer que, se a vida 

é alguma coisa, será no absoluto desse algo quе

 algo surgirá para iluminar o pensamento. Porém, 

s distrações da vida começam a impor-se 

entre mim e esse pensamento que procuro. Canso-me 

de não saber mais do que aquilo que faz parte 

deste mundo que me rodeia: o mundo 

por onde passa um rio que não vejo e as únicas árvores 

são essas que ainda crescem ao longo das avenidas, 

sob o fumo do passado que esconde a névoa 

do futuro. Podia pegar num caderno de apontamentos 

e percorrer as folhas em branco: aí, nesse vazio de palavras,

a palavra essencial é o nada que a preenche 

da primeira à última. Então, começo a escrever 

como se isso me ajudasse a encontrar um sentido; 

e acabo com a saudade do caderno vazio 

perante o absoluto das palavras que o enchem. 


Nuno Júdice, 

in A mais frágil das moradas - poemas à memória de Eduardo Lourenço, 

Guerra e Paz


Atividades: 

Reflexão sobre as questões existenciais referidas no poema. 

Debate sobre a forma que o poeta encontra para dar sentido à vida e quais os resultados alcançados.

Formulação de diferentes conselhos possíveis para o poeta: no sentido de aceitar, de resolver, de negar o sentido da vida. 


Tópicos de discussão: 

Que outras grandes questões da humanidade é habitual encontrar na poesia? Porquê? 

Como podem as palavras representar o absoluto e o nada? 

Como espécie, recorremos às palavras para explicar a vida. Que sucesso tem esta empreitada humana?

segunda-feira, 24 de março de 2025

Entre muitos - Wislawa Szymborska


Entre muitos
Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos.

Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.

No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.

Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.

Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.

Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.

Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.

Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.

E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?

Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?

A sorte até agora
me tem sido favorável.
Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.

Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.

Poderia ser eu mesma — mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.

Wislawa Szymborska

sábado, 15 de março de 2025

Cantiga de Maldizer - Miguel Torga


Esta menina que eu sei
É como a rosa dos ventos:
Ora grita aqui-del-Rei,
Se alguém a vem namorar,
Ora maldiz os conventos
Onde o pai a quer guardar.

É um riso agradecido
E um pranto de se acabar.

Parece um fruto maduro,
Do outro lado do muro,
Com medo de ser comido
E medo de ali ficar.

MIGUEL TORGA
(12-9-1946)

Espera - Miguel Torga

E a expedição partiu.

Partiu, e o coração da mãe parou.

E parado de angústia assim viveu

Enquanto a caravela não voltou.