É hora de vos deixar, marcos da terra,
formas vãs do mudável pensamento,
formas organizadas pelo sonho:
cantando vossa finalidade apontei.
É hora de vos deixar, poderes do mundo,
magnólias da manhã, solene túnica das árvores,
montanhas de lonjura e peso eterno.
Pássaros dissonantes, castigado sexo,
terreno vago das estrelas;
jovem morta que me deste a vida,
proas de galera do céu, demónios lúcidos,
longo silêncio de losangos frios,
pedras de rigor, penumbras d'água,
deuses de inesgotável sentido,
bacantes que destruís o que vos dei;
é hora de vos deixar, suaves afectos,
magia dos companheiros perenes,
subterrâneos do clavicórdio, veludações do clarinete,
e vós, forças da terra vindas,
admiráveis feras de cetim e coxas;
claro riso de amoras, odor de papoulas cinerárias,
arquitetura do mal, poços de angústia,
modulações da nuvem, inúmeras matérias
pela beleza crismadas:
cantando vossa finalidade mostrei.
É hora de vos deixar, sombra de Eurídice,
-constelação frouxa da minha insónia-,
lira que aplacaste o uivo do inferno.
É hora de vos deixar, golfo de lua,
orquestração da terra, álcoois do mundo,
morte, longo texto de mil metáforas
que se lê pelo direito e pelo avesso,
minha morte, casulo que desde o princípio habito;
é hora de explodir, largar o molde:
volto ao céu original,
céu debruado de Eurídice;
homem cripto-vivente,
sonho sonhado pela vida vã,
cantando expiro.
Murilo Mendes