quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Orla marítima - Ruy Belo

ORLA MARÍTIMA
O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios da vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

sábado, 17 de setembro de 2016

Ainda não havia televisão a cores - António Barahona

Ainda não havia televisão a côres.
Todas as noites, víamos a série d''O Fugitivo'.
Às vezes, bebíamos café e passávamos o resto
da noite a fumar e a conversar.
Não tínhamos pressa.
A paixão defendia-nos do tempo.

Saíamos, eternos, ao clarear do dia,
para comprar peixe na lota do Cais-do-Sodré
e tomar o pequeno almoço na cantina.

Não tínhamos nenhuma pressa.
A paixão defendia-nos do tempo.
Voltávamos, eternos, para casa.

António Barahona

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Gaudeamus igitur


Gaudeamus igitur
Iuvenes dum sumus
    Post iucundam iuventutem
    Post molestam senectutem
    Nos habebit humus

Sísifo - Miguel Torga


Recomeça ....
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...
( Miguel Torga )

Há um deus único e secreto - Manuel António Pina


Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos

Manuel António Pina

Eis a travessia - Al Berto

eis a travessia que te proponho
amanhecer sem querermos possuir o mundo
e no orvalho da noite saciar o desejo adiado
respirar a música inaudível das galáxias
sentir o tremeluzir da água no medo da boca

o amor
deve ser esta perseguição de sombras
esta cabeça de mármore decepada
ou este deserto
onde o receio de te perder permanece oculto
na sujidade antiga dos dias

Al Berto

Age como o vento - provērbio turco

Age como o vento, com intensidade e sem te fazeres notar.

Provérbio turco

domingo, 11 de setembro de 2016

Feliz aquela que efabulou o romance - Sophia Andresen

Feliz aquela que efabulou o romance
Depois de o ter vivido
A que lavrou a terra e construiu a casa
Mas fiel ao canto estridente das sereias
Amou a errância o caçador e a caçada
E sob o fulgor da noite constelada
À beira da tenda partilhou o vinho e a vida.
Sophia de Mello Breyner Andresen

Aqui despi meu vestido de exílio - Sophia Andresen

Aqui despi meu vestido de exílio
E sacudi de meus passos a poeira do desencontro

2 versos de Sophia de Mello Breyner Andresen