sábado, 22 de setembro de 2018

Uma voz na pedra, António Ramos Rosa

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

Se o poema não serve, António Ramos Rosa

Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao seu silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.
Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.
Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou a ajudar a dormir um inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.
Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.

Onde a poesia se exibe, António Ramos Rosa

Onde a poesia se exibe como um espectáculo espectacular
não é poesia
onde a audácia do poema não é única
não é poesia
onde a poesia não é inocência de natureza fluvial
não é poesia
onde a poesia não é escandalosamente pura
não é poesia
onde a poesia não é filha do deserto nem da sede
não é poesia
onde a poesia não é presença viva que nasce da solidão e da ausência
não é poesia
onde a poesia não se oferece no seu abandono
não é poesia
onde a poesia não é poesia
não é poesia

Todo aquele que abre um livro, António Ramos Rosa

Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue
[ de um pulso
que já não é de um autor que nunca o foi
e que será sempre o ritmo do que está a nascer
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos
Nunca o livro se completa embora o redondo
[ o circunde
e o mova para o seu interior sem nunca o envolver
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando
[ a claridade ofusca
Como se fosse preciso adormecer nela como sobre
[ os ombros do mundo
para acompanhar o fluxo ingenuamente novo
com os delicados diademas de fogo e espuma
O livro ora é de veludo ora de bronze
e os seus traços abrem janelas ou terraços
sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza
[ como uma anémona
ou não é mais do que uma estrela de areia
a sua proa sulca o incessante intervalo
entre o ardor de incompletos liames
e a estátua aérea que se eleva à sua frente
e continuamente se forma e se deforma
por não ser nada e ser o alvo puro
de um movimento ingénuo sonâmbulo e incerto.

O Jardim, António Ramos Rosa

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.
Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.
Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

Afecto, Saúl Dias

AFECTO

Tanto afecto disperso pelo mundo!

Um cão que não nos deixa.

Uma madeixa
de cabelo emoldurada.

O olhar fundo
de uma criança pobre.

Versos de António Nobre
guardados numa estante.

E um Poeta, sem idade,
sentado num bar,
tentando fixar
em castigados versos
um fugidio instante
de felicidade.

Saúl Dias, 'Essência', desenhos de Julio, Porto, Brasília Editora, 1973.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Poema em Linha Recta, Álvaro de Campos

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Poema em Linha Recta - Álvaro de Campos
Fernando Pessoa
nasceu a 13 de Junho de 1888.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos - Álvaro de Campos

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não sou eu.

As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.

Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

Nada! Não sei...
Um nada que dói...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Quero ignorado, e calmo - Ricardo Reis

Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.

Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.

Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada 'spera
Tudo que vem é grato.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa

A felicidade é um túnel - Ana Hatherly

A Felicidade é um Túnel

                      o domínio
o erotismo do domínio
                      do domínio irrisório
                                                mas enorme

submeter
ver tremer
ver o tremor do outro

                     vencer
                                  o gelo
                                  o desdém
                                                   veloz

a felicidade é um túnel

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades" 

Se eu pudesse trincar a terra toda - Alberto Caeiro

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXI"
Heterónimo de Fernando Pessoa

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Coisas tão felizes - José Tolentino de Mendonça

Entre amigo e amigo
jamais se afastam
coisas tão felizes
os instantâneos silêncios de certas formas
os protestos inocentes à nossa passagem
a natureza fortuita, dizia eu
imortal, dizias tu
do vento?

Felicidade - Sophia de Mello Breyner Andresen


Pela flor pelo vento pelo fogo 
Pela estrela da noite tão límpida e serena 
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo 
Pelo amor sem ironia — por tudo 
Que atentamente esperamos 
Reconheci tua presença incerta 

Tua presença fantástica e liberta.

O Sorriso - Eugénio de Andrade

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Green God - Eugénio de Andrade

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era um corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava. 

sábado, 6 de janeiro de 2018

Nevoeiro, Carlos de Oliveira

A cidade caía
casa a casa
do céu sobre sobre as colinas,
construída de cima para baixo
por chuvas e neblinas,
encontrava
a outra cidade que subia
do chão com o luar
das janelas acesas
e no ar
o choque as destruía
silenciosamente,
de modo que se via 
apenas a cidade inexistente.




carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998

Floriram por engano as rosas bravas, Camilo Pessanha

Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Por que me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze – quanta flor! – do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?