quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Para fazer o retrato de um pássaro - Jacques Prévert

PARA FAZER O RETRATO DE UM PÁSSARO

Pintar primeiro uma gaiola
com uma porta aberta
pintar em seguida
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro
encostar depois a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem dizer uma palavra
sem fazer um gesto...
Às vezes o pássaro vem logo
mas pode também demorar muitos anos
a decidir-se
Não desanimar
esperar
esperar anos, se necessário for
pois a rapidez ou demora da chegada do pássaro
não tem a ver com a qualidade do quadro
Quando o pássaro chegar
se por acaso chegar
manter um rigoroso silêncio
aguardar que o pássaro entre na gaiola
e quando ele entrar
fechar lentamente a porta com o pincel
em seguida
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar nas penas do pássaro
Pintar depois a árvore
escolhendo o seu mais belo ramo
para o pássaro
pintar também o verde da folhagem e a frescura do vento
os raios de sol
e o clamor dos insectos no calor do Verão 
em seguida aguardar que o pássaro se decida cantar
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta 
mas se ele sabe cantar é bom sinal
sinal que se pode assinar
Arrancar então com todo o cuidado
uma pena do pássaro
e escrever o nome num canto do quadro.

[Jacques Prévert, in PALAVRAS]

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

You are welcome to Elsinore - Mário Cesariny

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte     violar-nos     tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas     portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida     há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar