quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Graças quero dar ao divino - Jorge Luís Borges

Graças quero dar ao divino

labirinto dos efeitos e das causas

pela diversidade das criaturas

que formam este singular universo,

pela razão, que não cessará de sonhar

com um plano do labirinto,

pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulsses,

pelo amor que nos deixa ver os outros

como os vê a divindade,

pelo firme diamante e a água solta,

pela álgebra, palácio de precisos cristais,

pelas místicas moedas de Angel Silésio,

por Schopenhauer

que decifrou talvez o universo,

pelo fulgor do fogo

que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo,

pelo acaju, o cedro e o sândalo,

pelo pão e o sal,

pelo mistério da rosa

que prodiga cor e não a vê,

por certas vésperas e dias de 1955,

pelos duros tropeiros que, na planície,

arreiam os animais e a alba,

pela manhã em Montevideu,

pela arte da amizade,

pelo último dia de Sócrates,

pelas palavras que foram ditas num crepúsculo

de uma cruz a outra cruz,

por aquele sonho do Islão que abarcou

mil noites e uma noite,

por aquele outro sonho do inferno,

da torre do fogo que purifica

e das esferas gloriosas,

por Swendenborg,

que conversava com os anjos nas ruas de Londres,

pelos rios secretos e imemoriais

que convergem em mim,

pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,

pela espada e a harpa dos saxões,

pelo mar que um deserto resplandecente

e uma cifra de coisas que não sabemos

e um epitáfio dos vikings,

pela música verbal da Inglaterra,

pela música verbal da Alemanha,

pelo ouro que reluz nos versos,

pelo épico Inverno,

pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,

por Verlaine, inocente como os pássaros,

pelo prisma de cristal e o peso de bronze,

pelas riscas do tigre,

pe1as altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,

pela manhã no Texas,

por aquele sevilhano que redigiu a «Epístola Moral»

e cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,

por Séneca e Lucano, de Córdova,

que antes do espanhol escreveram

toda a literatura espanhola,

pelo geométrico e bizarro xadrez,

pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,

pelo odor medicinal dos eucaliptos,

pela linguagem, que pode simular a sabedoria,

pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,

pelo costume,

que nos repete e nos confirma como um espelho,

pela manhã, que nos depara a ilusão de um princípio,

pela noite, sua treva e sua astronomia,

pelo valor e a felicidade dos outros,

pela pátria, sentida nos jasmins

ou numa velha espada,

por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,

pelo facto de que o poema é inesgotável

e se confunde com a soma das criaturas

e jamais chegará ao último verso

e varia segundo os homens,

por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos

por morrer tão devagar,

pelos minutos que precedem o sonho,

pelo sonho e a morte,

esses dois tesouros ocultos,

pelos íntimos dons que não enumero,

pela música, misteriosa forma do tempo.


jorge luís borges

domingo, 12 de dezembro de 2021

Después de las fiestas - Julio Cortázar

«Después de las fiestas»

Y cuando todo el mundo se iba
y nos quedábamos los dos
entre vasos vacíos y ceniceros sucios,

qué hermoso era saber que estabas
ahí como un remanso,
sola conmigo al borde de la noche,
y que durabas, eras más que el tiempo,

eras la que no se iba
porque una misma almohada
y una misma tibieza
iba a llamarnos otra vez
a despertar al nuevo día,
juntos, riendo, despeinados.

Julio Cortázar

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Regras para viver em campo de Ourique - Assis Pacheco

Regras para viver em Campo de Ourique

 

1. Pratica a arte da boa vizinhança; estás numa terra pequena, não sejas opaco.

2. Dá o máximo de ti, pede aos outros o máximo. A escassez não vale uma vida.

3. O alheamento não vale uma vida.

4. Faz-te conhecer pelos gestos de todos os dias; mesmo os gestos neutros; mesmo os inúteis.

5. Não deixes de contrastar os homens sobre as pedras.

6. Saboreia os teus trajetos com uma paixão minuciosa.

7. Mas reserva-te para a surpresa e para o imprevisto (como no trabalho).

8. Vive direito. Vive claro. Evita enganar-te neste ponto.

9. Aceita os outros, que são sempre diversos.

10. Gostarias que de ti ficasse (mas qual?) uma memória.

Em todo o caso não a forces.

 

Fernando Assis Pacheco, A Musa Irregular


Eis-me no centro do assombro - Carlos de Oliveira

 

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Algarve - Miguel Torga

 ALGARVE


O mistério do mar,

O milagre do sol

E a graça da paisagem

Na moldura dos olhos.

E a paz feliz de que tenho o que é meu.

Ah, terra bem-amada!

Bênção da natureza

Caiada

De pureza

E nimbada

De saudade.

Algarve. Liberdade

Dos sentidos.

Férias ao sul

Da imaginação.

Ainda a mesma nação,

Mas com outros sinais.

E a memória também

De que todo o além

Começa neste cais.


Diário XIV

Fotografia: Ria Formosa - Algarve

sexta-feira, 16 de julho de 2021

terça-feira, 15 de junho de 2021

O meu amor não cabe num poema - Maria do Rosário Pedreira

 O meu amor não cabe num poema — há coisas assim,

que não se rendem à geometria deste mundo;

são como corpos desencontrados da sua arquitectura

ou quartos que os gestos não preenchem.


O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil

a agitação dos dedos na intimidade do texto —

a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías

nem a candura da mão que protege a chama que estremece.


O meu amor não se deixa dizer — é um formigueiro

que acode aos lábios como a urgência de um beijo

ou a matéria efervescente dos segredos; a combustão

laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios

de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,

ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.


O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras

com a nudez do teu nome — é um fantasma que estrebucha

no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.

Um verso que o vestisse definharia sob a roupa

como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema

podia ser o chão da sua casa.


Maria Do Rosário Pedreira, In “Poesia Reunida”

Foto: AC

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Esplanada - António Manuel Pina

 

ESPLANADA


Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

quinta-feira, 25 de março de 2021

A dança - Pablo Neruda

 Não te amo como se fosses uma rosa ou um topázio

Ou a flecha de cravos, que o fogo lança.

Amo-te como certas coisas escuras devem ser amadas,

Em segredo, entre a sombra e a alma.


Amo-te como a planta que não floresce e carrega,

Escondida dentro de si, a luz de todas as flores.

E, graças ao teu amor, escura no meu corpo

Vive a densa fragrância que cresce da terra.


Amo-te sem saber como ou quando ou de onde.

Amo-te tal como és, sem complexos nem orgulhos.

Amo-te assim porque não sei outro caminho além deste


Onde não existo eu nem tu.

Tão perto que a tua mão no meu peito é a minha mão

Tão perto que, quando fechas os olhos, adormeço.


Soneto XVII – La Danza
(Pablo Neruda)

No te amo como si fueras rosa de sal, topacio
o flecha de claveles que propagan el fuego:
te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y el alma.

Te amo como la planta que no florece y lleva
dentro de sí, escondida, la luz de aquellas flores,
y gracias a tu amor vive oscuro en mi cuerpo
el apretado aroma que ascendió de la tierra.

Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde,
te amo directamente sin problemas ni orgullo:
así te amo porque no sé amar de otra manera,

sino así de este modo en que no soy ni eres,
tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía,
tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño.

En Cien Sonetos de Amor/ Pablo Neruda, Editorial Losada S.A.,
Buenos Aires (AR), 7ª edição,1972, pág. 27.

Dispersão - Mário de Sá-Carneiro (lido por Camané)

https://ensina.rtp.pt/artigo/dispersao-de-mario-de-sa-carneiro/ 

Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro –
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi… Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!… )

E sinto que a minha morte –
Minha dispersão total –
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas…

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar…
Ninguém mas quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas…

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!…

Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço…

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Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba…

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Mário de Sá-Carneiro
in Dispersão

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Adília Lopes - Lua-de-mel

 



Para nos defendermos - Dimíter Ánguelov

 Para nos defendermos é preciso saber ter estatura mais baixa do que os cornos do adversário. 


Dimíter Ánguelov 

in CÓDIGO EVIDENTE

A vida responsável - Amália Bautista

 A VIDA RESPONSÁVEL 


Conduzir sem ter nenhum acidente, 

comprar macarrão, desodorizante, 

e cortar as unhas às minhas filhas.

Madrugar outra vez e ter cuidado 

para não dizer inconveniências, depois 

esmerar-me na prosa de umas páginas 

que não interessam mesmo para nada 

e dar um pouco de cor ao meu rosto. 

Lembrar-me da consulta com o pediatra, 

responder ao correio, estender roupa, 

declarar os rendimentos, ler livros 

e fazer ainda algumas chamadas.

Como gostaria de me dar ao luxo 

de ter o tempo todo que eu quisesse 

para fazer uma série de coisas estranhas, 

coisas desnecessárias, prescindíveis 

e, acima de tudo, inúteis e tolas.

Por exemplo, amar-te com loucura. 


Amalia Bautista

in CONTA-MO OUTRA VEZ 

( trad. Inês Dias)

Dai-me a casa vazia - Sophia de Mello Breyner

 "Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas.

Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade.

Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida."


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN- inédito sem data.

http://purl.pt/19841/1/1990/1990.html.


Lucien Hervé / Unidade habitacional de Marselha



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Pensar - Roberto Juarroz

 "A Viúva" de Frank O'Meara (1853-1888)


"Pensar é uma incompreensível insistência,

algo parecido com alongar o perfume da rosa

ou fazer furos de luz

numa porção de treva.


E é também transbordar algo

numa insensata manobra

a partir de um barco inabalavemente afundado

numa navegação sem barco.


Pensar é insistir

numa solidão sem retorno."


ROBERTO JUARROZ in "A Árvore Derrubada pelos Frutos", p. 66