O evento estético é algo tão evidente, tão imediato, tão indefinível como o amor, o sabor da fruta, da água.
domingo, 14 de fevereiro de 2021
Para nos defendermos - Dimíter Ánguelov
Para nos defendermos é preciso saber ter estatura mais baixa do que os cornos do adversário.
Dimíter Ánguelov
in CÓDIGO EVIDENTE
A vida responsável - Amália Bautista
A VIDA RESPONSÁVEL
Conduzir sem ter nenhum acidente,
comprar macarrão, desodorizante,
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
para não dizer inconveniências, depois
esmerar-me na prosa de umas páginas
que não interessam mesmo para nada
e dar um pouco de cor ao meu rosto.
Lembrar-me da consulta com o pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar os rendimentos, ler livros
e fazer ainda algumas chamadas.
Como gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que eu quisesse
para fazer uma série de coisas estranhas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, acima de tudo, inúteis e tolas.
Por exemplo, amar-te com loucura.
Amalia Bautista
in CONTA-MO OUTRA VEZ
( trad. Inês Dias)
Dai-me a casa vazia - Sophia de Mello Breyner
"Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas.
Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade.
Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida."
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN- inédito sem data.
http://purl.pt/19841/1/1990/1990.html.
Lucien Hervé / Unidade habitacional de Marselha
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Pensar - Roberto Juarroz
"A Viúva" de Frank O'Meara (1853-1888)
"Pensar é uma incompreensível insistência,
algo parecido com alongar o perfume da rosa
ou fazer furos de luz
numa porção de treva.
E é também transbordar algo
numa insensata manobra
a partir de um barco inabalavemente afundado
numa navegação sem barco.
Pensar é insistir
numa solidão sem retorno."
ROBERTO JUARROZ in "A Árvore Derrubada pelos Frutos", p. 66