terça-feira, 15 de junho de 2021

O meu amor não cabe num poema - Maria do Rosário Pedreira

 O meu amor não cabe num poema — há coisas assim,

que não se rendem à geometria deste mundo;

são como corpos desencontrados da sua arquitectura

ou quartos que os gestos não preenchem.


O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil

a agitação dos dedos na intimidade do texto —

a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías

nem a candura da mão que protege a chama que estremece.


O meu amor não se deixa dizer — é um formigueiro

que acode aos lábios como a urgência de um beijo

ou a matéria efervescente dos segredos; a combustão

laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios

de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,

ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.


O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras

com a nudez do teu nome — é um fantasma que estrebucha

no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.

Um verso que o vestisse definharia sob a roupa

como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema

podia ser o chão da sua casa.


Maria Do Rosário Pedreira, In “Poesia Reunida”

Foto: AC

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Esplanada - António Manuel Pina

 

ESPLANADA


Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.