quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Receita para fazer o azul - Nuno Júdice

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

As pessoas sensíveis - Sophia de Mello Breyner Andresen

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

“Ganharás o pão com o suor do teu rosto” Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão”

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoais–lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen

Cidade - Sophia de Mello Breyner Andresen

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas

Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia I

Variação:

Campo ----
Ó vida ----
Saber que ----

Que ----
E eu estou em ti ----
----
Nem ----

Saber que ----
E que ----
À minha alma ----
----

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Língua - Caetano Veloso

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E (xeque-mate) explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet, Moon, de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(Será que ele está no Pão de Açúcar?
Tá craude brô
Você e tu
Lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro!
Ma'de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
I like to spend some time in Mozambique
Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem

Só o Barbeiro - António Reis

Só o barbeiro
Julga que adormeço

Saboreio 
o tempo

Sigo as bicadas
a desenharem-se no pescoço
a sombra das orelhas

Rio com as cócegas

Vejo
Como na infância
A mão pousando a tesoura em forma de A

Oiço falar de jogos

E adormeço

António Reis, Poemas Quotidianos


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TEXTO NÃO LITERÁRIO:
IDA AO BARBEIRO
O homem foi cortar o cabelo. Sentou-se. O barbeiro cortou-lhe o cabelo. O homem adormeceu enquanto o barbeiro cortava.

Pêssego - Yvete K. Centeno

PÊSSEGO

Pêssego de cores quentes. Comer um pêssego. Levantar-se a meio da noite para comer um pêssego amarelo vermelho macio sumarento. Tocar-lhe com os dedos.mo veludo da pele. Cheirá-lo. Devagar, aspirá-lo inspirá-lo expirá-lo. Comer o pêssego vorazmente gulosamente mas com veneração. Desfazê-lo na boca. Mastigar mesmo o seu perfume. Absorver-lhe o espírito, a essência. A fruta é uma ideia fixa. Influência da Bíblia. Não sei como pode haver gente que não gosta de fruta. Morder com todos os dentes. Absorventeabsolutamente. Pêssego de superfície sanguínea luminosa. Na última dentada o caroço, e dentro do caroço uma amêndoa leitosa. Ácido cianídrico. Maravilhoso pêssego cheio de surpresas.

Yvete K. Centeno, As Palavras, Que Pena

Do seu longínquo reino cor-de-rosa - Fernando Pessoa

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e, cobrindo
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.

À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia —
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...

E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.

A Língua do Nhem - Cecília Meireles

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.
E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também
a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,
e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,
ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Em: Ou isto ou aquilo, Cecília Meireles, Rio de Janeiro, Nova Fronteira:

Era uma vez dez meninas - Mário Cesariny

"Era uma vez dez meninas
de uma aldeia muito probe.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão nove.
Era uma vez nove meninas
que só comiam biscoito.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão oito.
Era uma vez oito meninas
em terras de dom Esparguete.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão sete.
Era uma vez sete meninas
lindas como outras não veis.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão seis.
Era uma vez seis meninas
em landas de Charles Quinto.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão cinco.
Era uma vez cinco meninas
em um triângulo equilátero.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão quatro.
Era uma vez quatro meninas
qu'avondavam só ao mês.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão três.
Era uma vez três meninas
em o paço de dom Fuas.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão duas.
Era uma vez duas meninas
ante um home todo espuma.
Deu o trangolomângolo nelas
transformaram-se em só uma.
Era uma vez uma menina
terrada em coval mui fundo.
Deu o trangolomângolo nela
voltaram as dez ao mundo."
de Mário Cesariny de Vasconcelos, in Poemas de Bibe, por Mário Viegas