domingo, 22 de setembro de 2019

A inutilidade da gramática - Nuno Júdice

A INUTILIDADE DA GRAMÁTICA

Tocando o fruto da gramática como se 
caísse de maduro, fazia com que a casca 
de verbos se descolasse da polpa e via
cair o sumo do pronome sobre o sujeito
da frase que, para ele, tinha o corpo 
da amada. Seguira aquele modelo segundo
o qual no princípio era o verbo; mas 
o sujeito sobrepunha-se ao verbo, e via
o seu rosto, que a luz da manhã
enchia de cor, sorrir-lhe, como se
aquela sequência de palavras tivesse 
outra vida para além da página. Mas
a árvore secara; e quando foi à procura
da raiz no campo estéril da sua memória,
nenhum pronome tinha corpo, e o verbo
que o animara reduzia-se a uma forma 
inactiva nos seus dedos manchados de tinta

Nuno Júdice, O fruto da gramática, D. Quixote, 2014 (setembro), p. 26

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

O Poeta Psicossomático - Henrique Manuel Bento Fialho

O POETA PSICOSSOMÁTICO

   Há os poetas grandes, cimeiros, gigantescos, colossais, etc. Este de que vos falo era de tal forma titânico que precisava de um miradouro para poder contemplar a sua própria sombra. Era um poeta psicossomático.
   Certo dia penetrou a amante com o seu olhar mais de poeta psicossomático e disse-lhe: a tua saliva é o adubo da minha voz. Nesse mesmo instante, a boca transformou-se-lhe num vaso cheio de terra e cresceram-lhe plantas nos dentes.

Do livro “Call Center”

sábado, 31 de agosto de 2019

Ícaro - António Pedro Pita

Ícaro
sacudiu o pó
tratou cuidadosamente a ferida do joelho
reuniu os bocadinhos das suas
asas
colou-as com paciência
e pendurou-as na parede da sala
como recordação.

 António Pedro Pita

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Sobretudo as vozes - Silvina Rodrigues Lopes

Não vais dizer “Perdi os melhores dias”.
Aprendeste cedo que tudo é disperso.
Belo é estar aqui sem sufocar, neste
Abandono em que nada basta e nada falta.

Excerto

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Cruzámos os dias de verão - José Tolentino de Mendonça

Cruzámos os dias de Verão
o destino perseguia-nos com um ímpeto relutante
a listar calamidades
numa ascensão
por escarpas que tínhamos julgado a salvo
Corríamos o litoral com a nossa turbulenta forma
ou deixávamo-nos imóveis a ponto de parecer mortos
entre beleza, sobreposição e perigo
sem grande esclarecimento
a noite despenhava-se
no silêncio da corrente
O vento do mar já conseguiu acalmar muitos corações
mas os nossos não

José Tolentino de Mendonça

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Dois Rios - Luís Miguel Nava

DOIS RIOS

O corpo dividido em duas partes
fechadas
à chave uma na outra, avanço
num duplo coração como se fosse
ao mesmo tempo num só barco por dois rios.

Luís Miguel Nava, 'O Céu sob as Entranhas', Porto, Limiar, 1989.

fotografia © Fundação Luís Miguel Nava

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Para fazer o retrato de um pássaro - Jacques Prévert

PARA FAZER O RETRATO DE UM PÁSSARO

Pintar primeiro uma gaiola
com uma porta aberta
pintar em seguida
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro
encostar depois a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem dizer uma palavra
sem fazer um gesto...
Às vezes o pássaro vem logo
mas pode também demorar muitos anos
a decidir-se
Não desanimar
esperar
esperar anos, se necessário for
pois a rapidez ou demora da chegada do pássaro
não tem a ver com a qualidade do quadro
Quando o pássaro chegar
se por acaso chegar
manter um rigoroso silêncio
aguardar que o pássaro entre na gaiola
e quando ele entrar
fechar lentamente a porta com o pincel
em seguida
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar nas penas do pássaro
Pintar depois a árvore
escolhendo o seu mais belo ramo
para o pássaro
pintar também o verde da folhagem e a frescura do vento
os raios de sol
e o clamor dos insectos no calor do Verão 
em seguida aguardar que o pássaro se decida cantar
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta 
mas se ele sabe cantar é bom sinal
sinal que se pode assinar
Arrancar então com todo o cuidado
uma pena do pássaro
e escrever o nome num canto do quadro.

[Jacques Prévert, in PALAVRAS]

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

You are welcome to Elsinore - Mário Cesariny

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte     violar-nos     tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas     portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida     há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar