domingo, 22 de setembro de 2019

A inutilidade da gramática - Nuno Júdice

A INUTILIDADE DA GRAMÁTICA

Tocando o fruto da gramática como se 
caísse de maduro, fazia com que a casca 
de verbos se descolasse da polpa e via
cair o sumo do pronome sobre o sujeito
da frase que, para ele, tinha o corpo 
da amada. Seguira aquele modelo segundo
o qual no princípio era o verbo; mas 
o sujeito sobrepunha-se ao verbo, e via
o seu rosto, que a luz da manhã
enchia de cor, sorrir-lhe, como se
aquela sequência de palavras tivesse 
outra vida para além da página. Mas
a árvore secara; e quando foi à procura
da raiz no campo estéril da sua memória,
nenhum pronome tinha corpo, e o verbo
que o animara reduzia-se a uma forma 
inactiva nos seus dedos manchados de tinta

Nuno Júdice, O fruto da gramática, D. Quixote, 2014 (setembro), p. 26

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

O Poeta Psicossomático - Henrique Manuel Bento Fialho

O POETA PSICOSSOMÁTICO

   Há os poetas grandes, cimeiros, gigantescos, colossais, etc. Este de que vos falo era de tal forma titânico que precisava de um miradouro para poder contemplar a sua própria sombra. Era um poeta psicossomático.
   Certo dia penetrou a amante com o seu olhar mais de poeta psicossomático e disse-lhe: a tua saliva é o adubo da minha voz. Nesse mesmo instante, a boca transformou-se-lhe num vaso cheio de terra e cresceram-lhe plantas nos dentes.

Do livro “Call Center”