quinta-feira, 28 de julho de 2022

Uma demora lenta nas palavras - Rui Caeiro

“Uma demora lenta nas palavras

um calor bom na palma das mãos

uma maneira de gostar das pessoas e das coisas

sem tolher movimentos ou forçar as superfícies

beber aos golinhos o café a ferver

ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo

viver viver roçando as coisas ao de leve

sem poupar o veludo das mãos e do corpo

sem regatear o amor à flor da pele

olhar em torno de si perdida ou esperar o verão

e saber de um saber obscuro que o calor

todo o calor é de mais dentro que vem.”


Rui Caeiro, in "Livro de Afectos"

Venere coricata - Judite Teixeira (1922) - Ante o quadro de Tiziano Vicelli



Risca-se numa luz esbraseada 

sobre uma pele negra e rebrilhante 

a linha do seu corpo estonteante 

recortando a nudez estilizada..,


Cintilações de cor avermelhada, 

vem envolver-lhe a curva provocante! 

E na boca perversa de bacante, 

agoniza uma rosa ensanguentada!


Num amplexo quimérico cingida, 

revolve-se na luz enrubescida, 

em espasmos de luxúria, irrealizados...


Contorce-se num ritmo de desejos...

E a luz vai-lhe mordendo todo em beijos

o seio nu, de bicos enristados!


https://www.arlindo-correia.com/220705.html#Venere_Coricata

sábado, 2 de abril de 2022

O poema | Uma espécie de canção | William Carlos Williams (in Paterson)

 O POEMA

Tudo está
no som. Uma toada.
Raramente uma canção. Devia

ser uma canção – feita de
minúcias, vespas,
uma genciana – algo
imediato, tesoura

aberta, olhos
de uma dama – despertando
centrífuga, centrípeta.
.

THE POEM
It’s all in
the sound. A song.
Seldom a song. It should

be a song — made of
particulars, wasps,
a gentian — something
immediate, open

scissors, a lady’s
eyes — waking
centrifugal centripetal.


– William Carlos Williams. [nota e tradução de José Lino Grünewald]. Correio da Manhã. 24.11.1968.


UMA ESPÉCIE DE CANÇÃO
Deixa a serpente espreitar sob
as suas ervas
e a escrita
ser de palavras lentas e rápidas, afiadas
para ferir, quietas no esperar,
insones.

– pela metáfora, reconciliar
o povo e as pedras.
Compor. (Não ideias
mas em coisas) Inventar!
Saxífraga é a minha flor que rompe
as rochas.
.

A SORT OF A SONG
Let the snake wait under
his weed
and the writing
be of words, slow and quick, sharp
to strike, quiet to wait,
sleepless.
— through metaphor to reconcile
the people and the stones.
Compose. (No ideas
but in things) Invent!
Saxifrage is my flower that splits
the rocks.


– William Carlos Williams. [nota e tradução de José Lino Grünewald]. Correio da Manhã. 24.11.1968.


sábado, 15 de janeiro de 2022

Um dia abres os olhos e descobres - António Franco Alexandre

"Um dia abres os olhos e descobres

os inexactos corpos misturados

e ficas sem saber de que maneira

este estranho centauro nomear.


Já te espantou o lume, quando viste

uma língua no sonho da saliva,

e te riste, de ser tão branco o sangue

que nas beiras da noite adormecia.


Agora é o teu corpo que procura

na orla da floresta, uma fogueira

onde acordar as mãos de forma humana,


e resolver enfim, mas para sempre,

se ser o sacro emblema do horror

ou o primeiro verso de um poema."


António Franco Alexandre

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

É possível - Manuel Alegre

 Porque é tempo de recomeços:


“É possível falar sem um nó na garganta

é possível amar sem que venham proibir

é possível correr sem que seja fugir.

Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão

é possível viver sem que seja de rastos.

Os teus olhos nasceram para olhar os astros

se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É

possível transformares em arma a tua mão.

É possível o amor. É possível o pão.

É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.

É possível viver sem fingir que se vive.

É possível ser homem.

É possível ser livre livre livre.”

Manuel Alegre