quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Porque te amo - Pablo Neruda

 POR QUE TE AMO


https://youtu.be/Mg2NZFORGsg?si=eHwQH_CODN-Ir4Va


Te amo
te amo de uma maneira inexplicável
de uma forma inconfessável
de um modo contraditório 
Te amo
Te amo, com meus estados de ânimo que são muitos
e mudar de humor continuadamente
pelo que você já sabe

o tempo
a vida
a morte

Te amo
Te amo, com o mundo que não entendo
com as pessoas que não compreendem
com a ambivalência de minha alma
com a incoerência dos meus atos
com a fatalidade do destino
com a conspiração do desejo
com a ambiguidade dos fatos
ainda quando digo que não te amo, te amo
até quando te engano, não te engano
no fundo levo a cabo um plano
para amar-te melhor.

Te amo
Te amo, sem refletir, inconscientemente
irresponsavelmente, espontaneamente
involuntariamente, por instinto
por impulso, irracionalmente
de fato não tenho argumentos lógicos
nem sequer improvisados
para fundamentar este amor que sinto por ti
que surgiu misteriosamente do nada
que não resolveu magicamente nada
e que milagrosamente, pouco a pouco, com pouco e nada,
melhorou o pior de mim

Te amo
Te amo com um corpo que não pensa
com um coração que não raciocina
com uma cabeça que não coordena

Te amo
Te amo incompreensivelmente
sem perguntar-me porque te amo
sem importar-me porque te amo
sem questionar-me porque te amo

Te amo
simplesmente porque te amo
eu mesmo não sei por que te amo

Noite na ilha - Pablo Neruda

 Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha.

Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.

Talvez bem tarde nossos
sonos se uniram na altura ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
embaixo como raízes vermelhas que se tocam.

Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado
e teus olhos buscavam o que agora - pão,
vinho, amor e cólera - te dou, cheias as mãos,
porque tu és a taça que só esperava
os dons da minha vida.

Dormi junto contigo a noite inteira,
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos,
de repente desperto e no meio da sombra meu braço
rodeava tua cintura.

Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca
saída de teu sono me deu o sabor da terra,
de água-marinha, de algas, de tua íntima vida,
e recebi teu beijo molhado pela aurora
como se me chegasse do mar que nos rodeia.

Materia nupcial - Pablo Neruda

 De pie como un cerezo sin cáscara ni flores,

especial, encendido, con venas y saliva,

y dedos y testículos,

miro una niña de papel y luna,

horizontal, temblando y respirando y blanca

y sus pezones como dos cifras separadas,

y la rosal reunión de sus piernas en donde

su sexo de pestañas nocturnas parpadea.


Pálido, desbordante,
siento hundirse palabras en mi boca,
palabras como niños ahogados,
y rumbo y rumbo y dientes crecen naves,
y aguas y latitud como quemadas.

La pondré como una espada o un espejo,
y abriré hasta la muerte sus piernas temerosas,
y morderé sus orejas y sus venas,
y haré que retroceda con los ojos cerrados
en un espeso río de semen verde.

La inundaré de amapolas y relámpagos,
la envolveré en rodillas, en labios, en agujas,
la entraré con pulgadas de epidermis llorando
y presiones de crimen y pelos empapados.

La haré huir escapándose por uñas y suspiros,
hacia nunca, hacia nada,
trepándose a la lenta médula y al oxígeno,
agarrándose a recuerdos y razones
como una sola mano, como un dedo partido
agitando una uña de sal desamparada.

Debe correr durmiendo por caminos de piel
en un país de goma cenicienta y ceniza,
luchando con cuchillos, y sábanas, y hormigas,
y con ojos que caen en ella como muertos,
y con gotas de negra materia resbalando
como pescados ciegos o balas de agua gruesa.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Num bar de praia - Miguel Serras Pereira

 De Miguel Serras Pereira, tradutor, ensaísta e poeta que no próximo dia 16, sábado, a partir das 15h, estará connosco no colóquio Teatro, Espaço Vazio e Democracia, subordinado ao tema “Presencial versus Virtual: o caos do Sentido”, este poema com envio para a Foz do Arelho:


NUM BAR DE PRAIA

FORA DA ESTAÇÃO

(Foz do Arelho, anos 90)


*

Si je vous le disais pourtant, que je vous aime…

Alfred de Musset

*


Talvez não fosse só porque um dia morreríamos

apesar de por vezes o lembrarmos

como teríamos de admitir não tardaria

à cautela velando embora

de uma nota de melancólica ironia

a voz ao confessá-lo

mas a verdade é que de súbito voltavam

como que desde sempre à nossa espera

após mais uma noite em branco a bordo

do ventre da baleia

vinte ou vinte e cinco anos

de amor febril regado desde a véspera

de Stout copiosamente intervalada

por breves tragos de genebra velha


E os dois ali estávamos à mesa

de um bar de praia fora de estação

onde se bem que tendo finalmente

voltado a ver-nos sem sabermos

se era o prelúdio ou a coda o que tocávamos

já tanto me arrasara o tanto atraso

que não me resolvia a pegar na tua mão

e dizia-me depois por um momento

que bem vistas as coisas não seria

inteiramente absurdo

pescar um pouco em águas turvas

e ensaiar uma breve digressão 

sobre o voo das aves da lagoa

ou do eco outrora no seu grito

do estertor surdo na memória

talvez de deus nas vascas da agonia


Entretanto tu vias já as horas no relógio

porque ouviras de súbito na estrada

ranger os pneus de um automóvel

como nós daí a pouco

intempestivamente de partida

e falhava-me a voz só de imaginar

o que a seguir viria

se não fiado somente no acaso

mas antes sob o hipnótico efeito fulgurante

de um verso de musset

menos mal adequado à circunstância

me ouvisses sem mais como nem porquê

perguntar-te afinal como seria

se todavia eu to dissesse, que te amava


Assim adiei o dar-te a conhecer

para outra e mais segura ocasião

a tradução do verso bem amado

resignado a emendar a mão

e a mudar o caminho da conversa

hesitando suspenso

do ondular do teu olhar incandescente

que de tão vago ao mesmo tempo

não sei se me incitava ou me tolhia

enquanto me escutavas

ou tranquilamente respondias

e só o teu sorriso me provava

entre duas frases quase distraídas

que não te surpreendia afinal demasiado

veres como bem vias que nos pratos

ainda intacto o almoço arrefecia


Mas não vias nem eu que já ali ficara

definitivamente indecisa a minha vida


Miguel Serras Pereira, in “À Tona do Vazio & Reprise – Cinquenta anos de poesia de Miguel Serras Pereira, 1969-2019”, com prefácio da 1.ª edição por Emanuel Cameira, prefácio da 2.ª edição por Ricardo Marques,  Barricada de Livros, 2.ª edição, 2022, pp. 45-48.