quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Num bar de praia - Miguel Serras Pereira

 De Miguel Serras Pereira, tradutor, ensaísta e poeta que no próximo dia 16, sábado, a partir das 15h, estará connosco no colóquio Teatro, Espaço Vazio e Democracia, subordinado ao tema “Presencial versus Virtual: o caos do Sentido”, este poema com envio para a Foz do Arelho:


NUM BAR DE PRAIA

FORA DA ESTAÇÃO

(Foz do Arelho, anos 90)


*

Si je vous le disais pourtant, que je vous aime…

Alfred de Musset

*


Talvez não fosse só porque um dia morreríamos

apesar de por vezes o lembrarmos

como teríamos de admitir não tardaria

à cautela velando embora

de uma nota de melancólica ironia

a voz ao confessá-lo

mas a verdade é que de súbito voltavam

como que desde sempre à nossa espera

após mais uma noite em branco a bordo

do ventre da baleia

vinte ou vinte e cinco anos

de amor febril regado desde a véspera

de Stout copiosamente intervalada

por breves tragos de genebra velha


E os dois ali estávamos à mesa

de um bar de praia fora de estação

onde se bem que tendo finalmente

voltado a ver-nos sem sabermos

se era o prelúdio ou a coda o que tocávamos

já tanto me arrasara o tanto atraso

que não me resolvia a pegar na tua mão

e dizia-me depois por um momento

que bem vistas as coisas não seria

inteiramente absurdo

pescar um pouco em águas turvas

e ensaiar uma breve digressão 

sobre o voo das aves da lagoa

ou do eco outrora no seu grito

do estertor surdo na memória

talvez de deus nas vascas da agonia


Entretanto tu vias já as horas no relógio

porque ouviras de súbito na estrada

ranger os pneus de um automóvel

como nós daí a pouco

intempestivamente de partida

e falhava-me a voz só de imaginar

o que a seguir viria

se não fiado somente no acaso

mas antes sob o hipnótico efeito fulgurante

de um verso de musset

menos mal adequado à circunstância

me ouvisses sem mais como nem porquê

perguntar-te afinal como seria

se todavia eu to dissesse, que te amava


Assim adiei o dar-te a conhecer

para outra e mais segura ocasião

a tradução do verso bem amado

resignado a emendar a mão

e a mudar o caminho da conversa

hesitando suspenso

do ondular do teu olhar incandescente

que de tão vago ao mesmo tempo

não sei se me incitava ou me tolhia

enquanto me escutavas

ou tranquilamente respondias

e só o teu sorriso me provava

entre duas frases quase distraídas

que não te surpreendia afinal demasiado

veres como bem vias que nos pratos

ainda intacto o almoço arrefecia


Mas não vias nem eu que já ali ficara

definitivamente indecisa a minha vida


Miguel Serras Pereira, in “À Tona do Vazio & Reprise – Cinquenta anos de poesia de Miguel Serras Pereira, 1969-2019”, com prefácio da 1.ª edição por Emanuel Cameira, prefácio da 2.ª edição por Ricardo Marques,  Barricada de Livros, 2.ª edição, 2022, pp. 45-48.

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