domingo, 16 de agosto de 2020

Vermeer - Wislawa Szymborska

 

A ESCOLHA DE MATILDE CAMPILHO

Wislawa Szymborska, “Vermeer” (retirado de “Um Amor Feliz”, Companhia das Letras, 2011)

Enquanto aquela mulher do Rijksmuseum
atenta no silêncio pintado
dia após dia derrama
o leite da jarra na tijela,
o Mundo não merece
o fim do mundo.



A JUSTIFICAÇÃO DE MATILDE CAMPILHO PARA A SUA ESCOLHA

Seria difícil achar um poema só para um dia só. Um dia pode valer doze poemas, ou nenhum. O dia da poesia é como o dia do pai, ou o dia da mãe, o dia dos mortos ou o dia da árvore. Ironicamente ou não, calha de facto mesmo em cheio no dia da árvore. Não me parece que seja por acaso, já que a poesia também brota e dá sombra, ao mesmo tempo que ilumina. Mas o dia da poesia, tal como todos aqueles referidos lá atrás, encaixa na verdade em todos os dias. Não é só por ser dia do pai que eu vou celebrar o meu pai - celebro-o todos os dias. Celebro a minha mãe a toda a hora também, assim como celebro as flores, as folhas, os frutos e os mortos. Cada passo dado numa vida celebra qualquer coisa que nos pertence e da qual descendemos, celebra também tudo aquilo que não nos pertence mas que nos é dado a observar, celebra a normalidade e ao mesmo tempo o transcendente. Cada passo, um acontecimento. E a poesia, como qualquer gesto, não foge à regra das pequenas peripécias diárias. Às vezes um poema surge para traduzir um passo dado em falso. Outras vezes surge para ilustrar um episódio comum, diário, aparentemente sem importância. De vez em quando manifesta-se sem aviso, numa palavra só, e essa palavra serve para sossegar toda a tribulação naquele minuto. A poesia - como o golo num copo de água, como um vento no asfalto, como uma tinta vermelha que descasca numa parede - é só a tradução do mundo. Às vezes simplificada, outras vezes aumentada. Outras vezes de aparência estática e banal, e aí é que costuma revelar-se o segredo. Como neste poema de Wislawa Szymborska: à primeira vista são só seis versos curtos, nenhuma rima, apenas uma descrição daquele tão famoso quadro que está a esta hora exata pendurado numa sala em Amesterdão. Mas leia outra vez. Dos seis versos descende a mulher, a paleta do pintor, o século XVII encostado ao século XXI, a proteína do leite, a mão do artesão que afagou a tigela, a sala do museu, o movimento permanente de um líquido branco que não para de verter. E o mundo, sempre em movimento, atento ao fim do mundo mas negando-se a ele. Com coragem, sem vergonha. Não há um poema só para um dia só, mas um dia inteiro pode desdobrar-se num poema. E o dia não acaba.

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